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CONGREGAÇÃO
PARA A DOUTRINA DA FÉ
A MENSAGEM
DE FÁTIMA
APRESENTAÇÃO
Na
passagem do segundo para o terceiro milénio, o Papa João Paulo II decidiu
tornar público o texto da terceira parte do « segredo de Fátima ».
Depois
dos acontecimentos dramáticos e cruéis do século XX, um dos mais
tormentosos da história do homem, com o ponto culminante no cruento atentado
ao « doce Cristo na terra », abre-se assim o véu sobre uma realidade que
faz história e a interpreta na sua profundidade segundo uma dimensão
espiritual, a que é refractária a mentalidade actual, frequentemente eivada
de racionalismo.
A
história está constelada de aparições e sinais sobrenaturais, que
influenciam o desenrolar dos acontecimentos humanos e acompanham o caminho do
mundo, surpreendendo crentes e descrentes. Estas manifestações, que não
podem contradizer o conteúdo da fé, devem convergir para o objecto central
do anúncio de Cristo: o amor do Pai que suscita nos homens a conversão e dá
a graça para se abandonarem a Ele com devoção filial. Tal é a mensagem de
Fátima, com o seu veemente apelo à conversão e à penitência, que leva
realmente ao coração do Evangelho.
Fátima
é, sem dúvida, a mais profética das aparições modernas. A primeira e a
segunda parte do « segredo », que são publicadas em seguida para ficar
completa a documentação, dizem respeito antes de mais à pavorosa visão do
inferno, à devoção ao Imaculado Coração de Maria, à segunda guerra
mundial, e depois ao prenúncio dos danos imensos que a Rússia, com a sua
defecção da fé cristã e adesão ao totalitarismo comunista, haveria de
causar à humanidade.
Em
1917, ninguém poderia ter imaginado tudo isto: os três pastorinhos de Fátima
vêem, ouvem, memorizam, e Lúcia, a testemunha sobrevivente, quando recebe a
ordem do Bispo de Leiria e a autorização de Nossa Senhora, põe por escrito.
Para
a exposição das primeiras duas partes do « segredo », aliás já
publicadas e conhecidas, foi escolhido o texto escrito pela Irmã Lúcia na
terceira memória, de 31 de Agosto de 1941; na quarta memória, de 8 de
Dezembro de 1941, ela acrescentará qualquer observação.
A
terceira parte do « segredo » foi escrita « por ordem de Sua Ex.cia Rev.ma
o Senhor Bispo de Leiria e da (...) Santíssima Mãe », no dia 3 de Janeiro
de 1944.
Existe
apenas um manuscrito, que é reproduzido aqui fotostaticamente. O envelope
selado foi guardado primeiramente pelo Bispo de Leiria. Para se tutelar melhor
o « segredo », no dia 4 de Abril de 1957 o envelope foi entregue ao Arquivo
Secreto do Santo Ofício. Disto mesmo, foi avisada a Irmã Lúcia pelo Bispo
de Leiria.
Segundo apontamentos do Arquivo, no dia 17 de Agosto de 1959 e de acordo
com Sua Eminência o Cardeal Alfredo Ottaviani, o Comissário do Santo
Ofício, Padre Pierre Paul Philippe OP, levou a João XXIII o envelope com a
terceira parte do « segredo de Fátima ». Sua Santidade, « depois de alguma
hesitação », disse: « Aguardemos. Rezarei. Far-lhe-ei saber o que decidi
».(1)
Na
realidade, a decisão do Papa João XXIII foi enviar de novo o envelope selado
para o Santo Ofício e não revelar a terceira parte do « segredo ».
Paulo VI leu o conteúdo com o Substituto da Secretaria de Estado, Sua
Ex.cia Rev.ma D. Ângelo Dell'Acqua, a 27 de Março de 1965, e mandou
novamente o envelope para o Arquivo do Santo Ofício, com a decisão de não
publicar o texto.
João Paulo II, por sua vez, pediu o envelope com a terceira parte do «
segredo », após o atentado de 13 de Maio de 1981. Sua Eminência o Cardeal
Franjo Seper, Prefeito da Congregação, a 18 de Julho de 1981 entregou a Sua
Ex.cia Rev.ma D. Eduardo Martínez Somalo, Substituto da Secretaria de Estado,
dois envelopes: um branco, com o texto original da Irmã Lúcia em língua
portuguesa; outro cor-de-laranja, com a tradução do « segredo » em língua
italiana. No dia 11 de Agosto seguinte, o Senhor D. Martínez Somalo devolveu
os dois envelopes ao Arquivo do Santo Ofício.(2)
Como
é sabido, o Papa João Paulo II pensou imediatamente na consagração do
mundo ao Imaculado Coração de Maria e compôs ele mesmo uma oração para o
designado « Acto de Entrega », que seria celebrado na Basílica de Santa
Maria Maior a 7 de Junho de 1981, solenidade de Pentecostes, dia escolhido
para comemorar os 1600 anos do primeiro Concílio Constantinopolitano e os
1550 anos do Concílio de Éfeso. O Papa, forçadamente ausente, enviou uma
radiomensagem com a sua alocução. Transcrevemos a parte do texto, onde se
refere exactamente o acto de entrega:
«
Ó Mãe dos homens e dos povos, Vós conheceis todos os seus
sofrimentos e as suas esperanças, Vós sentis maternalmente todas as lutas
entre o bem e o mal, entre a luz e as trevas, que abalam o mundo, acolhei o
nosso brado, dirigido no Espírito Santo directamente ao vosso Coração, e abraçai
com o amor da Mãe e da Serva do Senhor aqueles que mais esperam por este abraço
e, ao mesmo tempo, aqueles cuja entrega
também Vós esperais de maneira particular. Tomai sob a vossa protecção
materna a família humana inteira, que, com enlevo afectuoso, nós Vos
confiamos, ó Mãe. Que se aproxime para todos o tempo da paz e da liberdade,
o tempo da verdade, da justiça e da esperança ». (3)
Mas,
para responder mais plenamente aos pedidos de Nossa Senhora, o Santo Padre
quis, durante o Ano Santo da Redenção, tornar mais explícito o acto de
entrega de 7 de Junho de 1981, repetido em Fátima no dia 13 de Maio de 1982.
E, no dia 25 de Março de 1984, quando se recorda o fiat
pronunciado por Maria no momento da Anunciação, na Praça de S. Pedro, em
união espiritual com todos os Bispos do mundo precedentemente « convocados
», o Papa entrega ao Imaculado Coração de Maria os homens e os povos, com
expressões que lembram as palavras ardorosas pronunciadas em 1981:
«
E por isso, ó Mãe dos homens e dos
povos, Vós que conheceis todos os seus sofrimentos e as suas esperanças,
Vós que sentis maternalmente todas as lutas entre o bem e o mal, entre a luz
e as trevas, que abalam o mundo contemporâneo, acolhei o nosso clamor que,
movidos pelo Espírito Santo, elevamos directamente ao vosso Coração: Abraçai, com amor de Mãe
e de Serva do Senhor, este nosso mundo humano, que Vos confiamos e
consagramos, cheios de inquietude pela sorte terrena e eterna dos homens e dos
povos.
De
modo especial Vos entregamos e consagramos aqueles homens e aquelas nações que desta entrega e desta consagração têm
particularmente necessidade.
“À vossa protecção nos acolhemos, Santa Mãe de Deus”! Não
desprezeis as súplicas que se elevam de nós que estamos na provação!
».
Depois
o Papa continua com maior veemência e concretização de referências, quase
comentando a Mensagem de Fátima nas suas predições infelizmente cumpridas:
« Encontrando-nos hoje diante Vós, Mãe de Cristo, diante do vosso
Imaculado Coração, desejamos, juntamente com toda a Igreja, unir-nos à
consagração que, por nosso amor, o vosso Filho fez de Si mesmo ao Pai: “Eu
consagro-Me por eles — foram as suas palavras — para eles serem também
consagrados na verdade” (Jo 17, 19). Queremos unir-nos ao nosso
Redentor, nesta consagração pelo mundo e pelos homens, a qual, no seu
Coração divino, tem o poder de alcançar o perdão e de conseguir a
reparação.
A força desta consagraçãopermanece por todos os tempos e abrange todos os homens, os povos e as nações;
e supera todo o mal, que o espírito das trevas é capaz de despertar no coração
do homem e na sua história e que, de facto, despertou nos nossos tempos.
Oh
quão profundamente sentimos a necessidade de consagração pela humanidade e
pelo mundo: pelo nosso mundo contemporâneo, em união com o próprio Cristo!
Na realidade, a obra redentora de Cristo deve ser participada pelo mundo por meio da Igreja.
Manifesta-o o presente Ano da Redenção: o Jubileu extraordinário de toda
a Igreja.
Neste
Ano Santo, bendita sejais acima de todas
as criaturas Vós, Serva do Senhor, que obedecestes da maneira mais plena
ao chamamento Divino!
Louvada
sejais Vós, que estais inteiramente
unida à consagração redentora do vosso Filho!
Mãe da Igreja! Iluminai o Povo de Deus nos caminhos da fé, da esperança
e da caridade! Iluminai de modo especial os povos dos quais Vós esperais a
nossa consagração e a nossa entrega. Ajudai-nos a viver na verdade da
consagração de Cristo por toda a família humana do mundo
contemporâneo.
Confiando-Vos, ó Mãe, o mundo, todos os homens e todos os povos, nós Vos confiamos
também a própria
consagração do mundo, depositando-a no vosso Coração materno.
Oh Imaculado Coração! Ajudai-nos a vencer a ameaça do mal, que se
enraíza tão facilmente nos corações dos homens de hoje e que, nos seus
efeitos incomensuráveis, pesa já sobre a vida presente e parece fechar os
caminhos do futuro!
Da fome e da guerra, livrai-nos!
Da guerra nuclear, de uma autodestruição incalculável, e de toda a
espécie de guerra, livrai-nos!
Dos pecados contra a vida do homem desde os seus primeiros instantes, livrai-nos!
Do ódio e do aviltamento da dignidade dos filhos de Deus, livrai-nos!
De todo o género de injustiça na vida social, nacional e internacional, livrai-nos!
Da facilidade em calcar aos pés os mandamentos de Deus, livrai-nos!
Da tentativa de ofuscar nos corações humanos a própria verdade de Deus, livrai-nos!
Da perda da consciência do bem e do mal, livrai-nos!
Dos pecados contra o Espírito Santo, livrai-nos, livrai-nos!
Acolhei,
ó Mãe de Cristo, este clamor carregado
do sofrimento de todos os homens! Carregado
do sofrimento de sociedades inteiras!
Ajudai-nos com a força do Espírito Santo a vencer todo o pecado: o pecado
do homem e o “pecado do mundo”, enfim o pecado em todas as suas
manifestações.
Que se revele uma vez mais, na história do mundo, a força salvífica
infinita da Redenção: a força do Amor
misericordioso! Que ele detenha o mal! Que ele transforme as
consciências! Que se manifeste para todos, no vosso Imaculado Coração, a luz
da Esperança! ».(4)
A
Irmã Lúcia confirmou pessoalmente que este acto, solene e universal, de
consagração correspondia àquilo que Nossa Senhora queria: « Sim, está
feita tal como Nossa Senhora a pediu, desde o dia 25 de Março de 1984 »
(carta de 8 de Novembro de 1989). Por isso, qualquer discussão e ulterior
petição não tem fundamento.
Na documentação apresentada, para além das páginas manuscritas da Irmã
Lúcia inserem-se mais quatro textos: 1) A carta do Santo Padre à Irmã
Lúcia, datada de 19 de Abril de 2000; 2) Uma descrição do colóquio que
houve com a Irmã Lúcia no dia 27 de Abril de 2000; 3) A comunicação lida,
por encargo do Santo Padre, por Sua Eminência o Cardeal Ângelo Sodano,
Secretário de Estado, em Fátima no dia 13 de Maio deste ano; 4) O
comentário teológico de Sua Eminência o Cardeal Joseph Ratzinger, Prefeito
da Congregação para a Doutrina da Fé.
Uma
orientação para a interpretação da terceira parte do « segredo » tinha
sido já oferecida pela Irmã Lúcia, numa carta dirigida ao Santo Padre a 12
de Maio de 1982, onde dizia:
« A terceira parte do segredo refere-se às palavras de Nossa Senhora:
“Se não, [a Rússia] espalhará os seus erros pelo mundo, promovendo
guerras e perseguições à Igreja. Os bons serão martirizados, o Santo Padre
terá muito que sofrer, várias nações serão aniquiladas” (13-VII-1917).
A terceira parte do segredo é uma revelação simbólica, que se refere
a este trecho da Mensagem, condicionada ao facto de aceitarmos ou não o que a
Mensagem nos pede: “Se atenderem a meus pedidos, a Rússia converter-se-á e
terão paz; se não, espalhará os seus erros pelo mundo, etc”.
Porque não temos atendido a este apelo da Mensagem,
verificamos que ela se tem cumprido, a Rússia foi invadindo o mundo com os
seus erros. E se não vemos ainda, como facto consumado, o final desta
profecia, vemos que para aí caminhamos a passos largos. Se não recuarmos no
caminho do pecado, do ódio, da vingança, da injustiça atropelando os
direitos da pessoa humana, da imoralidade e da violência, etc.
E não digamos que é Deus que assim nos castiga; mas,
sim, que são os homens que para si mesmos se preparam o castigo. Deus apenas
nos adverte e chama ao bom caminho, respeitando a liberdade que nos deu; por
isso os homens são responsáveis».(5)
A decisão tomada pelo Santo Padre João Paulo II de tornar pública a
terceira parte do « segredo » de Fátima encerra um pedaço de história,
marcado por trágicas veleidades humanas de poder e de iniquidade, mas
permeada pelo amor misericordioso de Deus e pela vigilância cuidadosa da Mãe
de Jesus e da Igreja.
Acção
de Deus, Senhor da história, e corresponsabilidade do homem, no exercício
dramático e fecundo da sua liberdade, são os dois alicerces sobre os quais
se constrói a história da humanidade.
Ao aparecer em Fátima, Nossa Senhora faz-nos apelo a estes valores
esquecidos, a este futuro do homem em Deus, do qual somos parte activa e
responsável.
Tarcisio Bertone, SDB
Arcebispo emérito de Vercelli
Secretário da Congregação para a Doutrina da Fé
O « SEGREDO » DE FÁTIMA
PRIMEIRA E SEGUNDA PARTE DO « SEGREDO » SEGUNDO A
REDACÇÃO FEITA PELA IRMÃ LÚCIA NA « TERCEIRA MEMÓRIA », DE 31
DE AGOSTO DE 1941, DESTINADA AO BISPO DE LEIRIA-FÁTIMA
(texto
original)
(transcrição)
(6)
Terei
para isso que falar algo do segredo e responder ao primeiro ponto de interrogação.
O
que é o segredo?
Parece-me que o posso dizer, pois que do Céu tenho já a licença. Os
representantes de Deus na terra, têm-me autorizado a isso várias vezes, e em
várias cartas, uma das quais, julgo que conserva V. Ex.cia Rev.ma do Senhor
Padre José Bernardo Gonçalves, na em que me manda escrever ao Santo Padre.
Um dos pontos que me indica é a revelação do segredo. Algo disse, mas para
não alongar mais esse escrito que devia ser breve, limitei-me ao
indispensável, deixando a Deus a oportunidade d'um momento mais
favorável.
Expus
já no segundo escrito a dúvida que de 13 de Junho a 13 de Julho me
atormentou e que n'essa aparição tudo se desvaneceu.
Bem
o segredo consta de três coisas distintas, duas das quais vou revelar.
A
primeira foi pois a vista do inferno!
Nossa Senhora mostrou-nos um grande mar de fôgo que parcia estar debaixo
da terra. Mergulhados em êsse fôgo os demónios e as almas, como se fossem
brasas transparentes e negras, ou bronziadas com forma humana, que
flutuavam no incêndio levadas pelas chamas que d'elas mesmas saiam,
juntamente com nuvens de fumo, caindo para todos os lados, semelhante ao cair
das faulhas em os grandes incêndios sem peso nem equilíbrio, entre gritos e
gemidos de dôr e desespero que horrorizava e fazia estremecer de pavor. Os
demónios destinguiam-se por formas horríveis e ascrosas de animais
espantosos e desconhecidos, mas transparentes e negros. Esta vista foi um
momento, e graças à nossa bôa Mãe do Céu; que antes nos tinha prevenido
com a promeça de nos levar para o Céu (na primeira aparição) se assim não
fosse, creio que teríamos morrido de susto e pavor.
Em
seguida, levantámos os olhos para Nossa Senhora que nos disse com bondade e
tristeza:
— Vistes o inferno, para onde vão as almas dos pobres pecadores, para as
salvar, Deus quer establecer no mundo a devoção a meu Imaculado Coração.
Se fizerem o que eu disser salvar-se-ão muitas almas e terão paz. A guerra
vai acabar, mas se não deixarem de ofender a Deus, no reinado de Pio XI
começará outra peor. Quando virdes uma noite, alumiada por uma luz
desconhecida, sabei que é o grande sinal que Deus vos dá de que vai a punir
o mundo de seus crimes, por meio da guerra, da fome e de perseguições à
Igreja e ao Santo Padre. Para a impedir virei pedir a consagração da Rússia
a meu Imaculado Coração e a comunhão reparadora nos primeiros sábados. Se
atenderem a meus pedidos, a Rússia se converterá e terão paz, se não,
espalhará seus erros pelo mundo, promovendo guerras e perseguições à
Igreja, os bons serão martirizados, o Santo Padre terá muito que sufrer,
várias nações serão aniquiladas, por fim o meu Imaculado Coração
triunfará. O Santo Padre consagrar-me-á a Rússia, que se converterá, e
será consedido ao mundo algum tempo de paz.(7)
TERCEIRA PARTE DO « SEGREDO »
(texto original)
(transcrição) (8)
« J.M.J.
A terceira parte do segredo revelado a 13 de Julho de 1917 na Cova da Iria-Fátima.
Escrevo
em acto de obediência a Vós Deus meu, que mo mandais por meio de sua Ex.cia
Rev.ma o Senhor Bispo de Leiria e da Vossa e minha Santíssima Mãe.
Depois das duas partes que já expus, vimos ao lado esquerdo de Nossa
Senhora um pouco mais alto um Anjo com uma espada de fôgo em a mão esquerda;
ao centilar, despedia chamas que parecia iam encendiar o mundo; mas apagavam-se
com o contacto do brilho que da mão direita expedia Nossa Senhora ao seu
encontro: O Anjo apontando com a mão direita para a terra, com voz forte
disse: Penitência, Penitência, Penitência! E vimos
n'uma luz emensa que é Deus: “algo semelhante a como se vêem as pessoas
n'um espelho quando lhe passam por diante” um Bispo vestido de Branco “tivemos
o pressentimento de que era o Santo Padre”. Varios outros Bispos,
Sacerdotes, religiosos e religiosas subir uma escabrosa montanha, no cimo da
qual estava uma grande Cruz de troncos toscos como se fôra de sobreiro com a
casca; o Santo Padre, antes de chegar aí, atravessou uma grande cidade meia
em ruínas, e meio trémulo com andar vacilante, acabrunhado de dôr e pena,
ia orando pelas almas dos cadáveres que encontrava pelo caminho; chegado ao
cimo do monte, prostrado de juelhos aos pés da grande Cruz foi morto por um
grupo de soldados que lhe dispararam varios tiros e setas, e assim mesmo foram
morrendo uns trás outros os Bispos Sacerdotes, religiosos e religiosas e
varias pessoas seculares, cavalheiros e senhoras de varias classes e
posições. Sob os dois braços da Cruz estavam dois Anjos cada um com um
regador de cristal em a mão, n'êles recolhiam o sangue dos Martires e com
êle regavam as almas que se aproximavam de Deus.
Tuy-3-1-1944 ».
INTERPRETAÇÃO DO « SEGREDO »
CARTA DE JOÃO PAULO II
À IRMÃ LÚCIA
(texto original)
COLÓQUIO
COM A IRMÃ MARIA LÚCIA DE JESUS E
DO CORAÇÃO IMACULADO
O encontro da Irmã Lúcia com Sua Ex.cia Rev.ma D. Tarcisio Bertone,
Secretário da Congregação para a Doutrina da Fé, por encargo recebido do
Santo Padre, e Sua Ex.cia Rev.ma D. Serafim de Sousa Ferreira e Silva, Bispo
de Leiria-Fátima, teve lugar a 27 de Abril passado (uma quinta-feira), no
Carmelo de Santa Teresa em Coimbra.
A Irmã Lúcia estava lúcida e calma, dizendo-se muito feliz com a ida do
Santo Padre a Fátima para a Beatificação de Francisco e Jacinta, há muito
desejada por ela.
O Bispo de Leiria-Fátima leu a carta autógrafa do Santo Padre, que
explicava os motivos da visita. A Irmã Lúcia disse sentir-se muito honrada,
e releu pessoalmente a carta comprazendo-se por vê-la nas suas próprias
mãos. Declarou-se disposta a responder francamente a todas as
perguntas.
Então, o Senhor D. Tarcisio Bertone apresenta-lhe dois envelopes: um
exterior que tinha dentro outro com a carta onde estava a terceira parte do «
segredo » de Fátima. Tocando esta segunda com os dedos, logo exclamou: « É
a minha carta », e, depois de a ler, acrescentou: « É a minha letra
».
Com o auxílio do Bispo de Leiria-Fátima, foi lido e interpretado o texto
original, que é em língua portuguesa. A Irmã Lúcia concorda com a
interpretação segundo a qual a terceira parte do « segredo » consiste numa
visão profética, comparável às da história sagrada. Ela reafirma a sua
convicção de que a visão de Fátima se refere sobretudo à luta do
comunismo ateu contra a Igreja e os cristãos, e descreve o imane sofrimento
das vítimas da fé no século XX.
À pergunta: « A personagem principal da visão é o Papa? », a Irmã
Lúcia responde imediatamente que sim e recorda como os três pastorinhos
sentiam muita pena pelo sofrimento do Papa e Jacinta repetia: « Coitadinho do
Santo Padre. Tenho muita pena dos pecadores! » A Irmã Lúcia continua: «
Não sabíamos o nome do Papa; Nossa Senhora não nos disse o nome do Papa.
Não sabíamos se era Bento XV, Pio XII, Paulo VI ou João Paulo II, mas que
era o Papa que sofria e isso fazia-nos sofrer a nós também ».
Quanto à passagem relativa ao Bispo vestido de branco, isto é, ao Santo
Padre — como logo perceberam os pastorinhos durante a « visão » — que
é ferido de morte e cai por terra, a irmã Lúcia concorda plenamente com a
afirmação do Papa: « Foi uma mão materna que guiou a trajectória da bala
e o Santo Padre agonizante deteve-se no limiar da morte » (João Paulo II, Meditação
com os Bispos Italianos, a partir da Policlínica Gemelli, 13 de Maio de
1994).
Uma vez que a Irmã Lúcia, antes de entregar ao Bispo de Leiria-Fátima de
então o envelope selado com a terceira parte do « segredo », tinha escrito
no envelope exterior que podia ser aberto somente depois de 1960 pelo
Patriarca de Lisboa ou pelo Bispo de Leiria, o Senhor D. Bertone pergunta-lhe:
« Porquê o limite de 1960? Foi Nossa Senhora que indicou aquela data?
».Resposta da Irmã Lúcia: « Não foi Nossa Senhora; fui eu que meti a data
de 1960 porque, segundo intuição minha, antes de 1960 não se perceberia,
compreender-se-ia somente depois. Agora pode-se compreender melhor. Eu escrevi
o que vi; não compete a mim a interpretação, mas ao Papa ».
Por último, alude-se ao manuscrito, não publicado, que a Irmã Lúcia
preparou para dar resposta a tantas cartas de devotos e peregrinos de Nossa
Senhora. A obra intitula-se « Os apelos da Mensagem de Fátima », e contém
pensamentos e reflexões que exprimem, em chave catequética e parenética, os
seus sentimentos e espiritualidade cândida e simples. Perguntou-se-lhe se
gostava que fosse publicado, ao que a Irmã Lúcia respondeu: « Se o Santo
Padre estiver de acordo, eu fico contente; caso contrário, obedeço àquilo
que decidir o Santo Padre ». A Irmã Lúcia deseja sujeitar o texto à
aprovação da Autoridade Eclesiástica, esperando que o seu escrito possa
contribuir para guiar os homens e mulheres de boa vontade no caminho que
conduz a Deus, meta última de todo o anseio humano.
O
colóquio termina com uma troca de terços: à Irmã Lúcia foi dado o terço
oferecido pelo Santo Padre, e ela, por sua vez, entrega alguns terços
confeccionados pessoalmente por ela.
A Bênção, concedida em nome do Santo Padre, concluiu o encontro.
COMUNICAÇÃO DE SUA EMINÊNCIA O CARD. ÂNGELO
SODANO SECRETÁRIO DE ESTADO DE SUA SANTIDADE
No final da solene Concelebração Eucarística presidida
por João Paulo II em Fátima, o Cardeal Ângelo Sodano, Secretário de
Estado, pronunciou em português as palavras seguintes:
Irmãos
e irmãs no Senhor!
No
termo desta solene celebração, sinto o dever de apresentar ao nosso amado
Santo Padre João Paulo II os votos mais cordiais de todos os presentes pelo
seu próximo octogésimo aniversário natalício, agradecidos pelo seu
precioso ministério pastoral em benefício de toda a Santa Igreja de Deus.
Na circunstância solene da sua vinda a Fátima, o Sumo Pontífice incumbiu-me
de vos comunicar uma notícia. Como é sabido, a finalidade da vinda do Santo
Padre a Fátima é a beatificação dos dois Pastorinhos. Contudo Ele quer dar
a esta sua peregrinação também o valor de um renovado preito de gratidão a
Nossa Senhora pela protecção que Ela Lhe tem concedido durante estes anos de
pontificado. É uma protecção que parece ter a ver também com a chamada
terceira parte do « segredo » de Fátima.
Tal
texto constitui uma visão profética comparável às da Sagrada Escritura,
que não descrevem de forma fotográfica os detalhes dos acontecimentos
futuros, mas sintetizam e condensam sobre a mesma linha de fundo factos que se
prolongam no tempo numa sucessão e duração não especificadas. Em consequência,
a chave de leitura do texto só pode ser de
carácter simbólico.
A visão de Fátima refere-se sobretudo à luta dos sistemas ateus contra a
Igreja e os cristãos e descreve o sofrimento imane das testemunhas da fé do
último século do segundo milénio. É uma Via
Sacra sem fim, guiada pelos Papas do século vinte.
Segundo
a interpretação dos pastorinhos, interpretação confirmada ainda
recentemente pela Irmã Lúcia, o « Bispo vestido de branco » que reza por
todos os fiéis é o Papa. Também Ele, caminhando penosamente para a Cruz por
entre os cadáveres dos martirizados (bispos, sacerdotes, religiosos,
religiosas e várias pessoas seculares), cai por terra como morto sob os tiros
de uma arma de fogo.
Depois do atentado de 13 de Maio de 1981, pareceu claramente a Sua
Santidade que foi « uma mão materna a guiar a trajectória da bala »,
permitindo que o « Papa agonizante » se detivesse « no limiar da morte »
[João Paulo II, Meditação com os Bispos Italianos, a partir da
Policlínica Gemelli, em: Insegnamenti di Giovanni
Paolo II, XVII-1 (Città del Vaticano 1994), 1061]. Certa ocasião em que
o Bispo de Leiria-Fátima de então passara por Roma, o Papa decidiu entregar-lhe
a bala que tinha ficado no jeep
depois do atentado, para ser guardada no Santuário. Por iniciativa do Bispo,
essa bala foi depois encastoada na coroa da imagem de Nossa Senhora de
Fátima.
Depois, os acontecimentos de 1989 levaram, quer na União Soviética quer
em numerosos Países do Leste, à queda do regime comunista que propugnava o
ateísmo. O Sumo Pontífice agradece do fundo do coração à Virgem
Santíssima também por isso. Mas, noutras partes do mundo, os ataques contra
a Igreja e os cristãos, com a carga de sofrimento que eles provocam,
infelizmente não cessaram. Embora os acontecimentos a que faz referência a
terceira parte do « segredo » de Fátima pareçam pertencer já ao passado,
o apelo à conversão e à penitência, manifestado por Nossa Senhora ao
início do século vinte, conserva ainda hoje uma estimulante actualidade. «
A Senhora da Mensagem parece ler com uma perspicácia singular os sinais dos
tempos, os sinais do nosso tempo. (...) O convite insistente de Maria
Santíssima à penitência não é senão a manifestação da sua solicitude
materna pelos destinos da família humana, necessitada de conversão e de
perdão » [João Paulo II, Mensagem para o Dia Mundial do Doente - 1997,
n. 1, em: Insegnamenti
di Giovanni Paolo II, XIX‑2 (Città del Vaticano 1996), 561].
Para
consentir que os fiéis recebam melhor a mensagem da Virgem de Fátima, o Papa
confiou à Congregação para a Doutrina da Fé o encargo de tornar pública a
terceira parte do « segredo », depois de lhe ter preparado um adequado
comentário.
Irmãos
e irmãs, damos graças a Nossa Senhora de Fátima pela sua protecção.
Confiamos à sua materna intercessão a Igreja do Terceiro Milénio.
Sub tuum præsidium confugimus, Sancta Dei Genetrix!
Intercede pro Ecclesia. Intercede pro Papa nostro Ioanne Paulo II. Amen.
Fátima,
13 de Maio de 2000.
COMENTÁRIO TEOLÓGICO
Quem lê com atenção o texto do chamado terceiro « segredo » de
Fátima, que depois de longo tempo, por disposição do Santo Padre, é aqui
publicado integralmente, ficará presumivelmente desiludido ou maravilhado
depois de todas as especulações que foram feitas. Não é revelado nenhum
grande mistério; o véu do futuro não é rasgado. Vemos a Igreja dos
mártires deste século que está para findar, representada através duma cena
descrita numa linguagem simbólica de difícil decifração. É isto o que a
Mãe do Senhor queria comunicar à cristandade, à humanidade num tempo de
grandes problemas e angústias? Serve-nos de ajuda no início do novo
milénio? Ou não serão talvez apenas projecções do mundo interior de
crianças, crescidas num ambiente de profunda piedade, mas simultaneamente
assustadas pelas tempestades que ameaçavam o seu tempo? Como devemos entender
a visão, o que pensar dela?
Revelação pública e revelações privadas – o seu lugar
teológico
Antes de encetar uma tentativa de interpretação, cujas linhas
essenciais podem encontrar-se na comunicação que o Cardeal Sodano
pronunciou, no dia 13 de Maio deste ano, no fim da Celebração Eucarística
presidida pelo Santo Padre em Fátima, é necessário dar alguns
esclarecimentos básicos sobre o modo como, segundo a doutrina da Igreja,
devem ser compreendidos no âmbito da vida de fé fenómenos como o de
Fátima. A doutrina da Igreja distingue « revelação pública » e «
revelações privadas »; entre as duas realidades existe uma diferença
essencial, e não apenas de grau. A noção « revelação pública » designa
a acção reveladora de Deus que se destina à humanidade inteira e está
expressa literariamente nas duas partes da Bíblia: o Antigo e o Novo
Testamento. Chama-se « revelação », porque nela Deus Se foi dando a
conhecer progressivamente aos homens, até ao ponto de Ele mesmo Se tornar
homem, para atrair e reunir em Si próprio o mundo inteiro por meio do Filho
encarnado, Jesus Cristo. Não se trata, portanto, de comunicações
intelectuais, mas de um processo vital em que Deus Se aproxima do homem;
naturalmente nesse processo, depois aparecem também conteúdos que têm a ver
com a inteligência e a compreensão do mistério de Deus. Tal processo
envolve o homem inteiro e, por conseguinte, também a razão, mas não só
ela. Uma vez que Deus é um só, também a história que Ele vive com a
humanidade é única, vale para todos os tempos e encontrou a sua plenitude
com a vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo. Por outras palavras, em
Cristo Deus disse tudo de Si mesmo, e portanto a revelação ficou concluída
com a realização do mistério de Cristo, expresso no Novo Testamento. O Catecismo
da Igreja Católica, para explicar este carácter definitivo e pleno da
revelação, cita o seguinte texto de S. João da Cruz: « Ao dar-nos, como
nos deu, o seu Filho, que é a sua Palavra — e não tem outra —, Deus
disse-nos tudo ao mesmo tempo e de uma só vez nesta Palavra única (...)
porque o que antes disse parcialmente pelos profetas, revelou-o totalmente,
dando-nos o Todo que é o seu Filho. E por isso, quem agora quisesse consultar
a Deus ou pedir-Lhe alguma visão ou revelação, não só cometeria um
disparate, mas faria agravo a Deus, por não pôr os olhos totalmente em
Cristo e buscar fora d'Ele outra realidade ou novidade » (CIC, n. 65;
S. João da Cruz, A Subida do Monte Carmelo, II, 22).
O facto de a única revelação de Deus destinada a todos os povos ter
ficado concluída com Cristo e o testemunho que d'Ele nos dão os livros do
Novo Testamento vincula a Igreja com o acontecimento único que é a história
sagrada e a palavra da Bíblia, que garante e interpreta tal acontecimento,
mas não significa que agora a Igreja pode apenas olhar para o passado,
ficando assim condenada a uma estéril repetição. Eis o que diz o Catecismo
da Igreja Católica: « No entanto, apesar de a Revelação ter acabado,
não quer dizer que esteja completamente explicitada. E está reservado à fé
cristã apreender gradualmente todo o seu alcance no decorrer dos séculos »
(n. 66). Estes dois aspectos — o vínculo com a unicidade do acontecimento e
o progresso na sua compreensão — estão optimamente ilustrados nos
discursos de despedida do Senhor, quando Ele declara aos discípulos: « Ainda
tenho muitas coisas para vos dizer, mas não as podeis suportar agora. Quando
vier o Espírito da Verdade, Ele guiar-vos-á para a verdade total, porque
não falará de Si mesmo (...) Ele glorificar-Me-á, porque há-de receber do
que é meu, para vo-lo anunciar » (Jo
16, 12-14). Por um lado, o Espírito serve de guia, desvendando assim um
conhecimento cuja densidade não se podia alcançar antes porque faltava o
pressuposto, ou seja, o da amplidão e profundidade da fé cristã, e que é
tal que não estará concluída jamais. Por outro lado, esse acto de guiar é
« receber » do tesouro do próprio Jesus Cristo, cuja profundidade
inexaurível se manifesta nesta condução por obra do Espírito. A propósito
disto, o Catecismo
cita uma densa frase do Papa Gregório Magno: « As palavras divinas crescem
com quem as lê » (CIC, n. 94; S. Gregório Magno, Homilia sobre
Ezequiel 1, 7, 8). O Concílio Vaticano II indica três caminhos
essenciais, através dos quais o Espírito Santo efectua a sua guia da Igreja
e, consequentemente, o « crescimento da Palavra »: realiza‑se por meio
da meditação e estudo dos fiéis, por meio da íntima inteligência que
experimentam das coisas espirituais, e por meio da pregação daqueles « que,
com a sucessão do episcopado, receberam o carisma da verdade » (Dei Verbum,
n. 8).
Neste contexto, torna-se agora possível compreender correctamente o
conceito de « revelação privada », que se aplica a todas as visões e
revelações verificadas depois da conclusão do Novo Testamento; nesta
categoria, portanto, se deve colocar a mensagem de Fátima. Ouçamos o que diz
o Catecismo
da Igreja Católica sobre isto também: « No decurso dos séculos tem
havido revelações ditas “privadas”, algumas das quais foram reconhecidas
pela autoridade da Igreja. (...) O seu papel não é (...) “completar” a
Revelação definitiva de Cristo, mas ajudar a vivê-la mais plenamente numa
determinada época da história » (n. 67). Isto deixa claro duas
coisas:
1.
A autoridade das revelações privadas é essencialmente diversa da única
revelação pública: esta exige a nossa fé; de facto, nela, é o próprio
Deus que nos fala por meio de palavras humanas e da mediação da comunidade
viva da Igreja. A fé em Deus e na sua Palavra é distinta de qualquer outra fé,
crença, opinião humana. A certeza de que é Deus que fala, cria em mim a
segurança de encontrar a própria verdade; uma certeza assim não se pode
verificar em mais nenhuma forma humana de conhecimento. É sobre tal certeza
que edifico a minha vida e me entrego ao morrer.
2. A revelação privada é um auxílio para esta fé, e manifesta-se
credível precisamente porque faz apelo à única revelação pública. O
Cardeal Próspero Lambertini, mais tarde Papa Bento XIV, afirma a tal
propósito num tratado clássico, que se tornou normativo a propósito das
beatificações e canonizações: « A tais revelações aprovadas não é
devida uma adesão de fé católica; nem isso é possível. Estas revelações
requerem, antes, uma adesão de fé humana ditada pelas regras da prudência,
que no-las apresentam como prováveis e religiosamente credíveis ». O
teólogo flamengo E. Dhanis, eminente conhecedor desta matéria, afirma
sinteticamente que a aprovação eclesial duma revelação privada contém
três elementos: que a respectiva mensagem não contém nada em contraste com
a fé e os bons costumes, que é lícito torná-la pública, e que os fiéis
ficam autorizados a prestar-lhe de forma prudente a sua adesão [E. Dhanis, Sguardo
su Fatima e bilancio di una discussione, em: La
Civiltà Cattolica, CIV (1953-II), 392-406, especialmente 397]. Tal
mensagem pode ser um válido auxílio para compreender e viver melhor o
Evangelho na hora actual; por isso, não se deve transcurar. É uma ajuda que
é oferecida, mas não é obrigatório fazer uso dela.
Assim, o critério para medir a verdade e o valor duma revelação privada
é a sua orientação para o próprio Cristo. Quando se afasta d'Ele, quando
se torna autónoma ou até se faz passar por outro desígnio de salvação,
melhor e mais importante que o Evangelho, então ela certamente não provém
do Espírito Santo, que nos guia no âmbito do Evangelho e não fora dele.
Isto não exclui que uma revelação privada realce novos aspectos, faça
surgir formas de piedade novas ou aprofunde e divulgue antigas. Mas, em tudo
isso, deve tratar-se sempre de um alimento para a fé, a esperança e a
caridade, que são, para todos, o caminho permanente da salvação. Podemos
acrescentar que frequentemente as revelações privadas provêm da piedade
popular e nela se reflectem, dando-lhe novo impulso e suscitando formas novas.
Isto não exclui que aquelas tenham influência também na própria liturgia,
como o demonstram por exemplo a festa do Corpo de Deus e a do Sagrado
Coração de Jesus. Numa determinada perspectiva, pode-se afirmar que, na
relação entre liturgia e piedade popular, está delineada a relação entre
revelação pública e revelações privadas: a liturgia é o critério, a
forma vital da Igreja no seu conjunto alimentada directamente pelo Evangelho.
A religiosidade popular significa que a fé cria raízes no coração dos
diversos povos, entrando a fazer parte do mundo da vida quotidiana. A
religiosidade popular é a primeira e fundamental forma de « inculturação
» da fé, que deve continuamente deixar-se orientar e guiar pelas
indicações da liturgia, mas que, por sua vez, a fecunda a partir do
coração.
Desta forma, passámos já das especificações mais negativas, e que eram
primariamente necessárias, à definição positiva das revelações privadas:
Como podem classificar-se de modo correcto a partir da Escritura? Qual é a
sua categoria teológica? A carta mais antiga de S. Paulo que nos foi
conservada e que é também o mais antigo escrito do Novo Testamento, a
primeira Carta aos Tessalonicenses, parece-me oferecer uma indicação. Lá,
diz o Apóstolo: « Não extingais o Espírito, não desprezeis as profecias.
Examinai tudo e retende o que for bom » (5, 19-21). Em todo o tempo é dado
à Igreja o carisma da profecia, que, embora tenha de ser examinado, não pode
ser desprezado. A este propósito, é preciso ter presente que a profecia, no
sentido da Bíblia, não significa predizer o futuro, mas aplicar a vontade de
Deus ao tempo presente e consequentemente mostrar o recto caminho do futuro.
Aquele que prediz o futuro pretende satisfazer a curiosidade da razão, que
deseja rasgar o véu que esconde o futuro; o profeta vem em ajuda da cegueira
da vontade e do pensamento, ilustrando a vontade de Deus enquanto exigência e
indicação para o presente. Neste caso, a predição do futuro tem uma
importância secundária; o essencial é a actualização da única
revelação, que me diz respeito profundamente: a palavra profética ora é
advertência ora consolação, ou então as duas coisas ao mesmo tempo. Neste
sentido, pode-se relacionar o carisma da profecia com a noção « sinais do
tempo », redescoberta pelo Vaticano II: « Sabeis interpretar o aspecto da
terra e do céu; como é que não sabeis interpretar o tempo presente? » (Lc
12, 56). Por « sinais do tempo », nesta palavra de Jesus, deve-se entender o
seu próprio caminho, Ele mesmo. Interpretar os sinais do tempo à luz da fé
significa reconhecer a presença de Cristo em cada período de tempo. Nas
revelações privadas reconhecidas pela Igreja — e portanto na de Fátima
—, trata-se disto mesmo: ajudar-nos a compreender os sinais do tempo e a
encontrar na fé a justa resposta para os mesmos.
A estrutura antropológica das revelações privadas
Tendo nós procurado, com estas reflexões, determinar o lugar teológico
das revelações privadas, devemos agora, ainda antes de nos lançarmos numa
interpretação da mensagem de Fátima, esclarecer, embora brevemente, o seu
carácter antropológico (psicológico). A antropologia teológica distingue,
neste âmbito, três formas de percepção ou « visão »: a visão pelos
sentidos, ou seja, a percepção externa corpórea; a percepção interior; e
a visão espiritual (visio sensibilis, imaginativa,
intellectualis). É claro que, nas visões de Lourdes, Fátima, etc,
não se trata da percepção externa normal dos sentidos: as imagens e as
figuras vistas não se encontram fora no espaço circundante, como está lá,
por exemplo, uma árvore ou uma casa. Isto é bem evidente, por exemplo, no
caso da visão do inferno (descrita na primeira parte do « segredo » de
Fátima) ou então na visão descrita na terceira parte do « segredo », mas
pode-se facilmente comprovar também noutras visões, sobretudo porque não
eram captadas por todos os presentes, mas apenas pelos « videntes ». De
igual modo, é claro que não se trata duma « visão » intelectual sem
imagens, como acontece nos altos graus da mística. Trata-se, portanto, da
categoria intermédia, a percepção interior que, para o vidente, tem uma
força de presença tal que equivale à manifestação externa
sensível.
Este ver interiormente não significa que se trata de fantasia, que seria
apenas uma expressão da imaginação subjectiva. Significa, antes, que a alma
recebe o toque suave de algo real mas que está para além do sensível,
tornando-a capaz de ver o não-sensível, o não-visível aos sentidos: uma
visão através dos « sentidos internos ». Trata-se
de verdadeiros « objectos » que tocam a alma, embora não pertençam ao
mundo sensível que nos é habitual. Por isso, exige-se uma vigilância
interior do coração que, na maior parte do tempo, não possuímos por causa
da forte pressão das realidades externas e das imagens e preocupações que
enchem a alma. A pessoa é levada para além da pura exterioridade, onde é
tocada por dimensões mais profundas da realidade que se lhe tornam visíveis.
Talvez assim se possa compreender por que motivo os destinatários preferidos
de tais aparições sejam precisamente as crianças: a sua alma ainda está
pouco alterada, e quase intacta a sua capacidade interior de percepção. «
Da boca dos pequeninos e das crianças de peito recebeste louvor »: esta foi
a resposta de Jesus — servindo-se duma frase do Salmo 8 (v. 3) — à
crítica dos sumos sacerdotes e anciãos, que achavam inoportuno o grito hossana
das crianças (Mt
21, 16).
Como dissemos, a « visão interior » não é fantasia, mas uma verdadeira
e própria maneira de verificação. Fá-lo, porém, com as limitações que
lhe são próprias. Se, na visão exterior, já interfere o elemento
subjectivo, isto é, não vemos o objecto puro mas este chega-nos através do
filtro dos nossos sentidos que têm de operar um processo de tradução; na
visão interior, isso é ainda mais claro, sobretudo quando se trata de
realidades que por si mesmas ultrapassam o nosso horizonte. O sujeito, o
vidente, tem uma influência ainda mais forte; vê segundo as próprias
capacidades concretas, com as modalidades de representação e conhecimento
que lhe são acessíveis. Na visão interior, há, de maneira ainda mais
acentuada que na exterior, um processo de tradução, desempenhando o sujeito
uma parte essencial na formação da imagem daquilo que aparece. A imagem pode
ser captada apenas segundo as suas medidas e possibilidades. Assim, tais
visões não são em caso algum a « fotografia » pura e simples do Além,
mas trazem consigo também as possibilidades e limitações do sujeito que as
apreende.
Isto é patente em todas as grandes visões dos Santos; naturalmente vale
também para as visões dos pastorinhos de Fátima. As imagens por eles
delineadas não são de modo algum mera expressão da sua fantasia, mas fruto
duma percepção real de origem superior e íntima; nem se hão-de imaginar
como se por um instante se tivesse erguido a ponta do véu do Além,
aparecendo o Céu na sua essencialidade pura, como esperamos vê-lo na união
definitiva com Deus. Poder-se-ia dizer que as imagens são uma síntese entre
o impulso vindo do Alto e as possibilidades disponíveis para o efeito por
parte do sujeito que as recebe, isto é, das crianças. Por tal motivo, a
linguagem feita de imagens destas visões é uma linguagem simbólica. Sobre
isto, diz o Cardeal Sodano: « Não descrevem de forma fotográfica os
detalhes dos acontecimentos futuros, mas sintetizam e condensam sobre a mesma
linha de fundo factos que se prolongam no tempo numa sucessão e duração
não especificadas ». Esta sobreposição de tempos e espaços numa única
imagem é típica de tais visões, que, na sua maioria, só podem ser
decifradas a
posteriori. E não é necessário que cada elemento da visão tenha de
possuir uma correspondência histórica concreta. O que conta é a visão como
um todo, e a partir do conjunto das imagens é que se devem compreender os
detalhes. O que efectivamente constitui o centro duma imagem só pode ser
desvendado, em última análise, a partir do que é o centro absoluto da «
profecia » cristã: o centro é o ponto onde a visão se torna apelo e
indicação da vontade de Deus.
Uma tentativa de interpretação do « segredo » de Fátima
A primeira e a segunda parte do « segredo » de Fátima foram já
discutidas tão amplamente por específicas publicações, que não necessitam
de ser ilustradas novamente aqui. Queria apenas chamar brevemente a atenção
para o ponto mais significativo. Os pastorinhos experimentaram, durante um
instante terrível, uma visão do inferno. Viram a queda das « almas dos
pobres pecadores ». Em seguida, foi-lhes dito o motivo pelo qual tiveram de
passar por esse instante: para « salvá-las » — para mostrar um caminho de
salvação. Isto faz-nos recordar uma frase da primeira Carta de Pedro que
diz: « Estais certos de obter, como prémio da vossa fé, a salvação das
almas » (1, 9). Como caminho para se chegar a tal objectivo, é indicado de
modo surpreendente para pessoas originárias do ambiente cultural anglo-saxónico
e germânico - a devoção ao Imaculado Coração de Maria. Para compreender
isto, deveria bastar uma breve explicação. O termo « coração », na
linguagem da Bíblia, significa o centro da existência humana, uma
confluência da razão, vontade, temperamento e sensibilidade, onde a pessoa
encontra a sua unidade e orientação interior. O « coração imaculado »
é, segundo o evangelho de Mateus (5, 8), um coração que a partir de Deus
chegou a uma perfeita unidade interior e, consequentemente, « vê a Deus ».
Portanto, « devoção » ao Imaculado Coração de Maria é aproximar-se
desta atitude do coração, na qual o fiat
— « seja feita a vossa vontade » — se torna o centro conformador de toda
a existência. Se porventura alguém objectasse que não se deve interpor um
ser humano entre nós e Cristo, lembre-se de que Paulo não tem medo de dizer
às suas comunidades: « Imitai-me » (cf. 1
Cor 4, 16; Fil 3, 17; 1 Tes 1, 6; 2
Tes 3, 7.9). No Apóstolo, elas podem verificar concretamente o que
significa seguir Cristo. Mas, com quem poderemos nós aprender sempre melhor
do que com a Mãe do Senhor?
Chegamos assim finalmente à terceira parte do « segredo » de Fátima,
publicado aqui pela primeira vez integralmente. Como resulta da documentação
anterior, a interpretação dada pelo Cardeal Sodano, no seu texto do dia 13
de Maio, tinha antes sido apresentada pessoalmente à Irmã Lúcia. A tal
propósito, ela começou por observar que lhe foi dada a visão, mas não a
sua interpretação. A interpretação, dizia, não compete ao vidente, mas à
Igreja. No entanto, depois da leitura do texto, a Irmã Lúcia disse que tal
interpretação corresponde àquilo que ela mesma tinha sentido e que, pela
sua parte, reconhecia essa interpretação como correcta. Sendo assim, limitar-nos-emos,
naquilo que vem a seguir, a dar de forma profunda um fundamento à referida
interpretação, partindo dos critérios anteriormente desenvolvidos.
Do mesmo modo que tínhamos indentificado, como palavra-chave da primeira e
segunda parte do « segredo », a frase « salvar as almas », assim agora a
palavra-chave desta parte do « segredo » é o tríplice grito: «
Penitência, Penitência, Penitência! » Volta-nos ao pensamento o início do
Evangelho: « Pænitemini et credite evangelio » (Mc 1, 15).
Perceber os sinais do tempo significa compreender a urgência da penitência,
da conversão, da fé. Tal é a resposta justa a uma época histórica
caracterizada por grandes perigos, que serão delineados nas sucessivas
imagens. Deixo aqui uma recordação pessoal: num colóquio que a Irmã Lúcia
teve comigo, ela disse-me que lhe parecia cada vez mais claramente que o
objectivo de todas as aparições era fazer crescer sempre mais na fé, na
esperança e na caridade; tudo o mais pretendia apenas levar a
isso.
Examinemos agora mais de perto as diversas imagens. O anjo com a espada de
fogo à esquerda da Mãe de Deus lembra imagens análogas do Apocalipse: ele
representa a ameaça do juízo que pende sobre o mundo. A possibilidade que
este acabe reduzido a cinzas num mar de chamas, hoje já não aparece de forma
alguma como pura fantasia: o próprio homem preparou, com suas invenções, a
espada de fogo. Em seguida, a visão mostra a força que se contrapõe ao
poder da destruição: o brilho da Mãe de Deus e, de algum modo proveniente
do mesmo, o apelo à penitência. Deste modo, é sublinhada a importância da
liberdade do homem: o futuro não está de forma alguma determinado
imutavelmente, e a imagem vista pelos pastorinhos não é, absolutamente, um
filme antecipado do futuro, do qual já nada se poderia mudar. Na realidade,
toda a visão acontece só para chamar em campo a liberdade e orientá-la numa
direcção positiva. O sentido da visão não é, portanto, o de mostrar um
filme sobre o futuro, já fixo irremediavelmente; mas exactamente o
contrário: o seu sentido é mobilizar as forças da mudança em bem. Por
isso, há que considerar completamente extraviadas aquelas explicações
fatalistas do « segredo » que dizem, por exemplo, que o autor do atentado de
13 de Maio de 1981 teria sido, em última análise, um instrumento do plano
divino predisposto pela Providência e, por conseguinte, não poderia ter
agido livremente, ou outras ideias semelhantes que por aí andam. A visão
fala sobretudo de perigos e do caminho para salvar-se deles.
As frases seguintes do texto mostram uma vez mais e de forma muito clara o
carácter simbólico da visão: Deus permanece o incomensurável e a luz que
está para além de qualquer visão nossa. As pessoas humanas são vistas como
que num espelho. Devemos ter continuamente presente esta limitação inerente
à visão, cujos confins estão aqui visivelmente indicados. O futuro é visto
apenas « como que num espelho, de maneira confusa » (cf. 1
Cor 13, 12). Consideremos agora as diversas imagens que se sucedem no
texto do « segredo ». O lugar da acção é descrito com três símbolos:
uma montanha íngreme, uma grande cidade meia em ruínas e finalmente uma
grande cruz de troncos toscos. A montanha e a cidade simbolizam o lugar da
história humana: a história como árdua subida para o alto, a história como
lugar da criatividade e convivência humana e simultaneamente de destruições
pelas quais o homem aniquila a obra do seu próprio trabalho. A cidade pode
ser lugar de comunhão e progresso, mas também lugar do perigo e da ameaça
mais extrema. No cimo da montanha, está a cruz: meta e ponto de orientação
da história. Na cruz, a destruição é transformada em salvação; ergue-se
como sinal da miséria da história e como promessa para a mesma.
Aparecem lá, depois, pessoas humanas: o Bispo vestido de branco («
tivemos o pressentimento que era o Santo Padre »), outros bispos, sacerdotes,
religiosos e religiosas e, finalmente, homens e mulheres de todas as classes e
posições sociais. O Papa parece caminhar à frente dos outros, tremendo e
sofrendo por todos os horrores que o circundam. E não são apenas as casas da
cidade que jazem meio em ruínas; o seu caminho é ladeado pelos cadáveres
dos mortos. Deste modo, o caminho da Igreja é descrito como uma Via
Sacra, como um caminho num tempo de violência, destruições e
perseguições. Nesta imagem, pode-se ver representada a história dum século
inteiro. Tal como os lugares da terra aparecem sinteticamente representados
nas duas imagens da montanha e da cidade e estão orientados para a cruz,
assim também os tempos são apresentados de forma contraída: na visão,
podemos reconhecer o século vinte como século dos mártires, como século
dos sofrimentos e perseguições à Igreja, como o século das guerras
mundiais e de muitas guerras locais que ocuparam toda a segunda metade do
mesmo, tendo feito experimentar novas formas de crueldade. No « espelho »
desta visão, vemos passar as testemunhas da fé de decénios. A este
respeito, é oportuno mencionar uma frase da carta que a Irmã Lúcia escreveu
ao Santo Padre no dia 12 de Maio de 1982: « A terceira parte do “segredo”
refere-se às palavras de Nossa Senhora: “Se não, [a Rússia] espalhará os
seus erros pelo mundo, promovendo guerras e perseguições à Igreja. Os bons
serão martirizados, o Santo Padre terá muito que sofrer, várias nações
serão aniquiladas” ».
Na
Via Sacra deste século, tem um papel especial a figura do Papa. Na
árdua subida da montanha, podemos sem dúvida ver figurados conjuntamente
diversos Papas, começando de Pio X até ao Papa actual, que partilharam os
sofrimentos deste século e se esforçaram por avançar, no meio deles, pelo
caminho que leva à cruz. Na visão, também o Papa é morto na estrada dos
mártires. Não era razoável que o Santo Padre, quando, depois do atentado de
13 de Maio de 1981, mandou trazer o texto da terceira parte do « segredo »,
tivesse lá identificado o seu próprio destino? Esteve muito perto da
fronteira da morte, tendo ele mesmo explicado a sua salvação com as palavras
seguintes: « Foi uma mão materna que guiou a trajectória da bala e o Papa
agonizante deteve-se no limiar da morte » (13 de Maio de 1994). O facto de
ter havido lá uma « mão materna » que desviou a bala mortífera demonstra
uma vez mais que não existe um destino imutável, que a fé e a oração são
forças que podem influir na história e que, em última análise, a oração
é mais forte que as balas, a fé mais poderosa que os exércitos.
A conclusão do « segredo » lembra imagens, que Lúcia pode ter visto em
livros de piedade e cujo conteúdo deriva de antigas intuições de fé. É
uma visão consoladora, que quer tornar permeável à força sanificante de
Deus uma história de sangue e de lágrimas. Anjos recolhem, sob os braços da
cruz, o sangue dos mártires e com ele regam as almas que se aproximam de
Deus. O sangue de Cristo e o sangue dos mártires são vistos aqui juntos: o
sangue dos mártires escorre dos braços da cruz. O seu martírio realiza-se
solidariamente com a paixão de Cristo, identificando-se com ela. Eles
completam em favor do corpo de Cristo o que ainda falta aos seus sofrimentos
(cf. Col
1, 24). A sua própria vida tornou-se eucaristia, inserindo-se no mistério do
grão de trigo que morre e se torna fecundo. O sangue dos mártires é semente
de cristãos, disse Tertuliano. Tal como nasceu a Igreja da morte de Cristo,
do seu lado aberto, assim também a morte das testemunhas é fecunda para a
vida futura da Igreja. Deste modo, a visão da terceira parte do « segredo
», tão angustiante ao início, termina numa imagem de esperança: nenhum
sofrimento é vão, e precisamente uma Igreja sofredora, uma Igreja dos
mártires torna-se sinal indicador para o homem na sua busca de Deus. Não se
trata apenas de ver os que sofrem acolhidos na mão amorosa de Deus como
Lázaro, que encontrou a grande consolação e misteriosamente representa
Cristo, que por nós Se quis fazer o pobre Lázaro; mas há algo mais: do
sofrimento das testemunhas deriva uma força de purificação e renovamento,
porque é a actualização do próprio sofrimento de Cristo e transmite ao
tempo presente a sua eficácia salvífica.
Chegamos assim a uma última pergunta: O que é que significa no seu
conjunto (nas suas três partes) o « segredo » de Fátima? O que é nos diz
a nós? Em primeiro lugar, devemos supor, como afirma o Cardeal Sodano, que «
os acontecimentos a que faz referência a terceira parte do “segredo” de
Fátima parecem pertencer já ao passado ». Os diversos acontecimentos, na
medida em que lá são representados, pertencem já ao passado. Quem estava à
espera de impressionantes revelações apocalípticas sobre o fim do mundo ou
sobre o futuro desenrolar da história, deve ficar desiludido. Fátima não
oferece tais satisfações à nossa curiosidade, como, aliás, a fé cristã
em geral que não pretende nem pode ser alimento para a nossa curiosidade. O
que permanece — dissemo-lo logo ao início das nossas reflexões sobre o
texto do « segredo » — é a exortação à oração como caminho para a «
salvação das almas », e no mesmo sentido o apelo à penitência e à
conversão.
Queria, no fim, tomar uma vez mais outra palavra-chave do « segredo » que
justamente se tornou famosa: « O meu Imaculado Coração triunfará ». Que
significa isto? Significa que este Coração aberto a Deus, purificado pela
contemplação de Deus, é mais forte que as pistolas ou outras armas de
qualquer espécie. O fiat de Maria, a palavra do seu Coração, mudou
a história do mundo, porque introduziu neste mundo o Salvador: graças
àquele « Sim », Deus pôde fazer-Se homem no nosso meio e tal permanece
para sempre. Que o maligno tem poder neste mundo, vemo-lo e experimentamo-lo
continuamente; tem poder, porque a nossa liberdade se deixa continuamente
desviar de Deus. Mas, desde que Deus passou a ter um coração humano e deste
modo orientou a liberdade do homem para o bem, para Deus, a liberdade para o
mal deixou de ter a última palavra. O que vale desde então, está expresso
nesta frase: « No mundo tereis aflições, mas tende confiança! Eu venci o
mundo » (Jo
16, 33). A mensagem de Fátima convida a confiar nesta promessa.
Joseph Card. Ratzinger
Prefeito da Congregação para
a Doutrina da Fé
(1) Lê-se no diário de João XXIII, a 17 de Agosto de 1959: «
Audiências: P. Philippe, Comissário do S.O., que me traz a carta que contém
a terceira parte dos segredos de Fátima. Reservo-me de a ler com o meu
Confessor ».
(2) Vale a pena recordar o comentário feito pelo Santo Padre, na
Audiência Geral de 14 de Outubro de 1981, sobre « O acontecimento de Maio:
grande prova divina », em: Insegnamenti di Giovanni
Paolo II, IV‑2 (Città del Vaticano 1981), 409-412; cf. L'Osservatore
Romano (ed. portuguesa de 18-X-1981), 484.
(3) Radiomensagem durante o rito, na Basílica de Santa Maria Maior, «
Veneração, agradecimento, entrega à Virgem Maria Theotokos », em: Insegnamenti
di Giovanni Paolo II, IV-1 (Città del Vaticano 1981), 1246; cf. L'Osservatore
Romano (ed. portuguesa de 14-VI-1981), 302.
(4) Na Jornada Jubilar das Famílias, o Papa entrega a Nossa Senhora os
homens e as nações: Insegnamenti di Giovanni
Paolo II, VII-1 (Città del Vaticano 1984), 775-777; cf. L'Osservatore
Romano (ed. portuguesa de 1-IV-1984), 157 e 160.
(5) Texto original da carta:
(6) Na « quarta memória », de 8 de Dezembro de 1941, a Irmã Lúcia
escreve: « Começo pois a minha nova tarefa, e cumprirei as ordens de V.
Ex.cia Rev.ma e os desejos do Senhor Dr. Galamba. Excetuando a parte do
segredo que por agora não me é permitido revelar, direi tudo; advertidamente
não deixarei nada. Suponho que poderão esquecer-me apenas alguns pequenos
detalhes de mínima importância ».
Texto original:
(7)
Na citada « quarta memória », a Irmã Lúcia acrescenta: « Em Portugal se
conservará sempre o dogma da fé etc. ».
Texto original:
(8) Na transcrição, respeitou-se o texto original mesmo quando havia
erros e imprecisões de escrita e pontuação, os quais, aliás, não impedem
a compreensão daquilo que a vidente quis dizer.
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